terça-feira, 1 de outubro de 2019

Almas entardecidas

Imagem: miro.medium.com

Encontraremos tranquilidade na solidão? Talvez este fosse o único pensamento a impulsionar os neurônios da moça paralisada sobre o banco da praça. Nem mesmo o tempo e suas ameaças, de chuva e ventos fortes a caminho, atraíam a atenção dela. Na mão esquerda um pedaço de bolo embolorado e, na direita, a esperança de reencontrar significados para sua vida solitária. Segurava com força um pequeno totem de argila que ganhara de um amigo, que regressara de Machu Picchu recentemente. Não estava segura o bastante para aceitar que tal objeto pudesse mudar sua sorte, nem mesmo sentia culpa ou vergonha por delegar tal empreendimento às coisas inanimadas. Afinal, animação era uma palavra que Annabelle carecia já há algum tempo, a contar pela escolha do nome dado por sua mãe. Para ela, ainda que sua mãe tivesse todas as razões do mundo para escolher Annabelle, isso tirou dela o direito de se perceber no mundo; de escolher sua representação mais caricata: seu nome que, em verdade, sua escolha predileta sempre foi Cristini.

Notou quando uma pessoa se aproximou e, sem hesitar, sentou a seu lado. Continuou imóvel e com o olhar penetrado no nada, apenas com o pensamento na eventual função social da solidão. Ao lado, o homem finge não perceber a presença de Annabelle. Mas tudo não passa de um jogo. Uma trama. O ar quente e triste do local contribuía para um entardecer bucólico. A poeira vermelha deixada pelos veículos lentamente se dissipa entre plantas e pessoas. Algumas com máscaras e outras, com máscaras eternas.

Annabelle pensava na incoerência da presença. Mesmo ali, próximos, ambos eram desconhecidos e solitários. E por este mesmo motivo, acreditava que conversar sobre lamúrias e desventuras seria ainda pior; potencializaria, ainda mais, uma situação há muito penosa, desgastante e extremamente decadente. Notou um barulho irritante da mão do estranho penetrando um pequeno saco de papel endurecido. Biscoito? Jujubas? O que estaria por encontrar no fundo do saco; no fundo do poço. Justamente no mês de setembro início do mês, na verdade, ar seco, secura constante, temperaturas elevadas, o que motivava aquele estranho a deixar o conforto do lar para alimentar-se em local tão improvável? Tinha em mente que, se perguntasse algo, seria o gatilho para uma aproximação. Isso não. Não naquele momento. Não naquela vida.

Se a solidão, eventualmente, tem uma finalidade, Annabelle queria encontrar a sua. Era segundo pensava, um direito seu ou, quem sabe, uma dádiva. O fato é que estar só tem lá suas vantagens como, por exemplo, imergir em si mesma, protegida aparentemente, de todas as frustrações. Dizem que a pior solidão é aquela do ausentar-se de si mesmo; não encontrar sentido para a própria vida e não ter forças para ressignificar o mundo. Annabelle estava acompanhada, com uma pessoa ao seu lado, porém, não estava em si e estava completamente só.

A cada mastigação, uma repulsa. Seria proposital daquele estranho ou uma estratégia tosca de aproximação. O fato é que Annabelle não conseguia mover um músculo sequer para atravessar a praça. Sair dali o quanto antes. No silêncio misturado com dentes, língua, saliva e restos de alimento, ela percebeu o momento de caridade daquele estranho. Lentamente o saquinho de papel endurecido diminuía a distância até seu corpo. Annabelle vira-se, mais lentamente ainda, com um olhar penetrante e absurdamente morto.

Por alguns segundos aquele estranho parecia desnudar a si mesmo e dizer o quanto a compreendia, pois também desejava romper, abruptamente, com tudo o que o definia; o que o rotulava. Sem palavras ou gestos de qualquer demonstração de afeto, Annabelle introduziu a mão esquerda para tomar o que não era seu por direito; para tomar para si algo oferecido. Eram jujubas de puro açúcar e coloridas artificialmente, tal qual sua vida desbotada naquele entardecer cinzento e quente.

Assim permaneceram por longos minutos, até o instante em que a última guloseima fosse destroçada por dentes robotizados. As bocas totalmente animadas por movimentos quase que, involuntários, seguiam frente ao crepúsculo que, lentamente, sucumbia à épica batalha com as trevas.

O homem levanta-se e inicia seus primeiros passos. Annabelle, imóvel, esboça algumas palavras. Talvez as melhores e mais significativas para aquela demonstração de irmandade. Imersa em pensamentos solitários, Annabelle sabia que o alimento é, em verdade, um fenômeno de aproximação com um poder enorme de igualar as almas; de ignorar posições sociais e relembrar ao ser humano sua marca essencial: a finitude.

— Obrigada.

Sem olhar para trás, o homem desaparece lentamente na poeira. “Lugar de onde veio e para onde vai” – pensou Annabelle.

Antes de sumir completamente, o homem responde:

— Seja livre, Cristini.


______
Ir para a página de Rogério Fernandes Lemes
Cadeira nº. 1:
Patrono: Antônio Delgado Martinez

Nenhum comentário:

Postar um comentário